terça-feira, 24 de maio de 2022
Sergio Moro vira réu em ação que pede ressarcimento por prejuízos da "lava jato"
A ação foi apresentada por cinco deputados federais, com fundamento no fato de que a lei prevê reparação por atos de agente público que afronta a normalidade institucional em proveito próprio, abrindo mão dos deveres funcionais inerentes ao cargo que ocupa.
O juízo da 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal recebeu a ação popular que pede que Sergio Moro seja responsabilizado pelos prejuízos causados pela "lava jato" no país, tornando réu o ex-juiz.
A ação foi apresentada por cinco deputados federais, com fundamento no fato de que a lei prevê reparação por atos de agente público que afronta a normalidade institucional em proveito próprio, abrindo mão dos deveres funcionais inerentes ao cargo que ocupa.
Pelo Twitter, o ex-juiz comentou a decisão, afirmando que se trata de uma completa "inversão de valores". Ele escreveu: "Em 2022, o PT quer, como disse Geraldo Alckmin, não só voltar à cena do crime, mas também culpar aqueles que se opuseram aos esquemas de corrupção da era petista. A ação popular proposta por membros do PT contra mim é risível. Assim que citado, me defenderei. A decisão do juiz de citar-me não envolve qualquer juízo de valor sobre a ação. Todo mundo sabe que o que prejudica a economia é a corrupção e não o combate a ela. Todos que lutaram contra a corrupção serão perseguidos na 'democracia petista'."
A ação popular apresenta uma lista das condutas de Moro que feriram o respeito aos limites legais e afrontaram o princípio da imparcialidade. Para começar, o então juiz autorizou a interceptação e monitorou conversas telefônicas de um escritório de advocacia, com o claro objetivo de "bisbilhotar" e saber antecipadamente a estratégia defensiva.
Além disso, determinou uma "espetaculosa" condição coercitiva de alguém que jamais deixou de atender às intimações judiciais, mediante o uso de um "aparato militar cinematográfico" e com a evidente finalidade de abalar a imagem do réu e sua presunção de inocência.
O então juiz ainda deu publicidade a conversas telefônicas com o nítido fim de convulsionar a sociedade e as instituições em favor do impeachment de uma Presidenta legitimamente eleita, e contra o partido então governista.
A peça ainda lembra o episódio em que Moro, sem jurisdição e de férias, atuou para manter preso o ex-presidente Lula, cuja soltura havia sido determinada por órgão jurisdicional hierarquicamente superior.
Ao mesmo tempo em que perseguia Lula, narram os deputados, Moro recebeu convite para integrar o governo de Jair Bolsonaro, seu antagonista político; deu publicidade a anexos de delação premiada para prejudicar Lula; e, logo depois, aceitou convite para chefiar o Ministério da Justiça no governo de Bolsonaro.
Depois de ter deixado o governo, prossegue a inicial, Moro foi contratado para trabalhar em empresa de consultoria responsável, dentre outros, pela recuperação judicial de empresas direta e indiretamente prejudicadas por atos que praticou enquanto juiz.
Além disso, lançou-se como candidato à Presidência da República "com base na fama e no capital político adquirido por sua atuação enquanto magistrado". Tudo isso, finaliza o pedido, praticado em manifesta contrariedade às balizas normativas e jurisprudenciais que delineiam a garantia constitucional do juiz natural.
A ação popular é assinada pelos advogados Marco Aurélio de Carvalho, Fabiano da Silva Santos, Lenio Luiz Streck, Weida Zancaner, Caroline Proner, Pedro Estevam Serrano, Gisele Guimarães Cittadino, Juvelino Strozake, Luciano Rollo Duarte, Larissa Ramina Reinaldo Santos de Almeida, Maíra Calidone Recchia Bayod, Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga, Marco Antônio Riechelmann Júnior, Luis Henrique Pichini Santos, Lucas Bortolozzo Clemente, Matheus Rodrigues Correa da Silva, Alfredo Ermírio de Araújo Andrade, Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Marchioni.
Ação Popular 1025482-78.2022.4.01.3400
terça-feira, 10 de maio de 2022
Ministério da Saúde incentiva violência obstétrica em lançamento da nova Caderneta da Gestante Em evento para ‘homenagear mães’, governo dá carta branca para violência de médicos no parto.
Ministério da Saúde incentiva violência obstétrica em lançamento da nova Caderneta da Gestante
Em evento para ‘homenagear mães’, governo dá carta branca para violência de médicos no parto.
Terça-feira 10 de maio 2022
Judimar J. Santos com The Intercept Brasil
O MINISTÉRIO DA SAÚDE, na figura do secretário de Atenção à Saúde Primária Raphael Câmara, anunciou na última semana o lançamento da sexta edição da Caderneta da Gestante. Serão distribuídos mais de três milhões de exemplares pelo SUS, todos com o preocupante estímulo a uma prática violenta e ultrapassada: a episiotomia, corte feito na vagina durante o parto para facilitar o trabalho do médico. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde reconheceu que não há qualquer evidência científica que apoie a realização da episiotomia.
O documento ainda promove uma diretriz duvidosa ao ressaltar a amamentação exclusiva como método para prevenir uma nova gravidez nos primeiros seis meses após o parto, apesar de complementar que esta proteção não é plena. Raphael Câmara, vale mencionar, é um fervoroso defensor da promoção da abstinência sexual como contracepção para jovens, opondo-se ao ensino do uso de contraceptivos.
Pior: no evento que lançou a caderneta, Câmara defendeu abertamente não só a episiotomia – considerada uma “mutilação genital” por Marsden Wagner, ex-diretor da área de Saúde da Mulher e da Criança da OMS – mas também a realização da manobra de Kristeller. Ela consiste em fortes empurrões e apertos na barriga da gestante feitos com as mãos, braços ou cotovelos durante o parto – isso quando o profissional de saúde não sobe na barriga da mulher. No mesmo documento de 2018, a OMS os destacou como uma fonte de “grande preocupação” pelo potencial de “dano à mãe ou ao bebê”.
Mais do que a episiotomia, que segue sendo realizada em mais de metade dos partos no Brasil por médicos em desacordo com as evidências científicas mais recentes – e causando grandes estragos à vida sexual das mulheres, como mostramos nesta reportagem – a manobra de Kristeller já é mais comumente reconhecida como uma forma de violência obstétrica.
Desde 2019, nossos profissionais de enfermagem são proibidos de realizá-la, tanto por ser entendida como uma forma de abuso quanto por haver conhecimento de que as evidências científicas demonstram que ela é “ineficiente e danosa à saúde materna e neonatal”. Além disso, o próprio Ministério da Saúde afirma com todas as letras nas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, documento de 2017, que “a manobra de Kristeller não deve ser realizada”
É ignorando as normas já estabelecidas pela própria pasta que representa, portanto, que Raphael Câmara verbaliza seu apoio à perigosa e violenta manobra em um evento que chamou de “símbolo para homenagear as mães” pelo Dia das Mães, comemorado no último domingo. Em sua fala, ele destacou a página que fala da episiotomia na caderneta, intitulada de “SUS e a cultura da paz” e lamentou que “essa parte materno-infantil” seja baseada “em ideologia, em guerra”.
Após uma breve pausa para cumprimentar com um riso entusiasmado “nossa eterna capitã” Mayra Pinheiro – a Capitã Cloroquina –, sentada na plateia para lhes “prestigiar”, Câmara seguiu: “Vamos parar de usar termos que não levam a nada, como violência obstétrica, que só provoca desagregação, coloca a culpa no profissional único, o que não tem o menor sentido”.
‘Um enfermeiro subiu em mim e ficou até minha filha nascer’.
Segundos depois, vem a defesa dos procedimentos violentos. “É importante eu, como obstetra, falar que dependendo da situação e, eu concordo, em casos excepcionais, eles podem e devem ser feitos, e quem define isso é o médico. Não são leigos, não são militantes”, argumentou, citando como exemplos “episiotomia, manobra de Kristeller”.
Para ele, a técnica não consiste em subir na barriga da gestante – “quem inventou isso?” –, mas sim em uma “manobra extremamente suave”. “Óbvio que se eu, com 130kg, sentar na barriga de uma grávida, óbvio que a grávida vai morrer, vai ter uma rotura hepática”, reconheceu. “Isso nunca foi e nunca será a manobra de Kristeller”.
‘Fratura de costela’
A ginecologista e obstetra Melania Amorim, pós-doutora em Saúde Reprodutiva pela OMS, reagiu à fala de Câmara com uma imagem de uma gestante coberta de hematomas em seu Instagram, acompanhada pela legenda: “como plantonista, primeiro do centro obstétrico e depois da UTI, recebi já muitas vítimas da manobra e tive a oportunidade de ver ruptura uterina, de vísceras (fígado, baço), luxação renal, hemorragia e morte materna por manobra de Kristeller”. Amorim continua, relatando que “são reais” as histórias de profissionais de saúde que “sobem na mesa e colocam seu peso” sobre o útero da parturiente, uma “forma nefanda e atroz de violência obstétrica”.
No último sábado, a médica publicou um “post aberto” para que vítimas da manobra deixassem seus relatos. “No meu primeiro parto um Enfermeiro subiu em mim e ficou até minha filha nascer. Aquilo me causava náuseas e dor! Mas eu não podia falar nada porque enfiaram um pano na minha boca para eu não fazer ‘força errada'”, contou uma internauta. “Pensei que ia morrer pelo peso do Enfermeiro. Fiquei com dor nas costelas por mais de 2 anos”.
Uma profissional de saúde relatou que, após a manobra, um recém-nascido não movimentava uma das pernas. “Algumas horas após o nascimento, desconfiaram de fratura de fêmur. Foi confirmada com radiografia. Fratura de fêmur no RN devido a manobra”. Outra mulher resumiu: “Fratura de costelas”. Até a publicação deste texto, mais de 40 mulheres já haviam narrado suas histórias.
Paraíso dos maus obstetras
A defesa feita por Câmara de atos que constituem violência obstétrica não surpreende, dado o histórico das instituições que representa e o papel exercido nelas pelo médico, representante do estado do Rio de Janeiro no Conselho Federal de Medicina. O Ministério da Saúde de Bolsonaro e o CFM ridicularizam há anos o conceito de violência obstétrica e contribuem para sua perpetuação ao afirmar que a luta contra esses abusos é uma afronta à dignidade dos médicos. E, mais do que mero membro dos dois órgãos, Raphael Câmara é quem faz o elo entre eles, reforçando o bolsonarismo no conselho de medicina e promovendo os interesses do CFM no governo federal.
A nova caderneta da gestante prova quão bem Câmara vem desempenhando esta última função. Ela é, segundo o site do ministério, “parte das ações desenvolvidas pela pasta para o aprimoramento da assistência materna e infantil”, que começou com a destruição da Rede Cegonha por parte do secretário.
A “mais bem-sucedida política pública de assistência ao pré-natal, parto e puerpério no Brasil”, como é caracterizada pelo Conselho Federal de Enfermagem, foi desmantelada para dar lugar à Rede de Atenção Materna e Infantil. Como mostramos em nossa newsletter de 15 de abril, a mudança foi criticada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e por organizações feministas.
E aqui entra o lobby bem-sucedido da categoria médica. A Rami, ao contrário da Rede Cegonha, retira o protagonismo da paciente na gravidez, no parto e no puerpério, exclui profissionais de enfermagem e ignora o cuidado na primeira infância para direcionar seus holofotes para uma única figura: a do médico obstetra – especialidade do conselheiro fluminense do CFM, vale lembrar.
A inclusão da episiotomia na caderneta e o endosso público de métodos cruéis para acelerar o parto durante seu lançamento são igualmente corporativistas. Agora, por meio de Raphael Câmara, o Ministério da Saúde não apenas faz pouco dessas violências, como confere publicamente legitimidade a essas técnicas – e, consequentemente, respaldo aos médicos que as utilizam à revelia da ciência e da integridade corporal das mulheres.
É o sonho de todo mau obstetra tornado realidade.
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